Surfe em tempos de Corona Vírus

07/06/2020
    • Langai



  • Nesses tempos de isolamento social e cooperação coletiva, tenho me questionado sobre a real necessidade de surfar (ou de não surfar). E como muita gente, por um tempo busquei justificativas para me convencer de que continuar surfando não era tão errado assim...

    Quando toda essa história de vírus começou, não dei muita importância. Eu sentia que tudo estaria bem pois o surfe, pelo menos para mim, estava salvo. Moro numa vila que dá acesso direto a praia sem passar por comércios ou aglomerações. Eu simplesmente poderia sair da minha casa com a prancha na mão, andar por entre as ruas de terra, atravessar um riozinho e pronto! 


    _direto pra água. Logo, não correria nem ofereceria nenhum risco, certo? 


    Mas e se todo mundo resolvesse surfar? E foi o que aconteceu. Logo no começo da crise, rolou um "carnaval fora de época"; uma massa de turistas desceu a Serra para passar a quarentena aqui e as praias ficaram lotadas. Depois disso aconteceu o previsto e como diria a Maysa, "meu mundo caiu"O acesso às praias - sobretudo ao surfe - foi proibido. 

    De cara eu entrei em negação, tentei no auge do meu egoísmo sabotar essa ideia a meu favor: "Isso é injusto, poderiam ter decretos para garantir que somente a população local pudesse surfar". Como se meu direito de surfar fosse mais nobre que o de outra pessoa...  

    O surfe move o lugar em que vivo. Mesmo no inverno, nos dias de swell o mar está lotado. Apesar de ser uma atividade individual, o surfe aglomera multidões e a gente sabe disso. Quem nunca se irritou com o crowd? Não se pode simplesmente "liberar" o surfe.


    _nós ainda temos dificuldade de respeitar as barreiras morais quando elas esbarram nas nossas vontades individuais.


    Pegar a onda no melhor pico é mais importante que evitar aglomerações, surfar na melhor hora do dia é mais importante do que ir em horários alternativos. Não da pra garantir que todos vão se portar em prol do coletivo. Além disso, quem garante que a cidade não estaria cheia novamente com a praia liberada?  

    Mas a questão é outra: Qual é a real necessidade de surfar nesse momento? 

    Essa pandemia nos leva de volta as nossas raízes. Conseguimos ver uma escala de necessidades na vida. Em primeiro, essencialmente precisamos de água, comida, teto e saúde. Sem isso fica difícil sobreviver. E que privilegiada sou eu de não me faltarem essas coisas, hein! Depois vem a percepção de que parte das pessoas simplesmente não tem esse kit básico de sobrevivência. E isso vem antes da minha vontade de ir à praia surfar. Ainda mais que essa vontade esbarra diretamente no item "saúde" dessas outras pessoas. Minha vontade pessoal não pode ser maior que minha consciência coletiva. O surfe faz parte de mim, mas cada um tem sua individualidade. Pra mim é o surfe, pro André o skate, pra Tayná a arte marcial... Não importa.


    _o que importa é o que sua individualidade faz pelo coletivo agora. 


    Por uma questão de comodismo, essa reflexão tem sido abafada há tempos por nós em quanto sociedade, mas essa pandemia educadamente veio escrachá-la na nossa cara. E isso na realidade pode gerar um terreno muito fértil. Atitudes até então "normais" estão transparecendo de outra forma: 

    Fazer estoque de álcool, de comida ou consumir irresponsavelmente frente a pessoas que mesmo na quarentena fazem faxina para não passar fome te traz qual tipo sentimento? É melhor comprar de uma multinacional  ou de pequenos empreendedores? 

    Como meu consumo reflete no meu bairro, na minha cidade e no país? E como ajudar aquelas pessoas que não tem os privilégios que eu tenho nesse momento? Considerando ainda um cenário mais extremo, é possível se manter sem pensar em coletivo e numa sociedade sustentável? Claro que eu também não tenho essas respostas organizadas...


    _mas posso usar esse tempo de isolamento para refletir...


    Uma coisa é fato: é difícil ficar sem surfe, mas é mais difícil ficar sem leitos nos hospitais, sem comida e sem casa para se proteger. Acredito que reconhecer nossos privilégios é um começo bom para entender essa quarentena. É irônico que num momento de isolamento, a gente tenha que abafar nossa individualidade pra pensar em coletivo. Mas todas essas reflexões impulsionam a gente pra um horizonte mais saudável depois dessa crise. O mundo está num novo processo e melhor do que mergulhar no mar agora, é mergulhar nesse cenário de mudança. Se for possível se isole, por você e por quem não pode se isolar. Entenda seu lugar na sociedade e defina a direção que você quer caminhar dentro disso. Então renasça! Segundo as palavras de uma mulher foda da história, nós não somos somente objetos da transformação, somos os sujeitos! 

    E calma... Se tem algo que não vai mudar agora é a dinâmica do mar... Quando tudo isso passar o surfe ainda vai estar lá! 

    Força manas <3  

    Beijos e, se puder, continue em casa.


     
    Leia também: Desabafo #4: carta aberta de uma surfista na quarentena

    Você sabia que nós somos um blog colaborativo? Nossa missão é inspirar mulheres a surfar e um dos passos nesse caminho é dar voz as próprias mulheres. Uma seguidora da @langaibr enviou esse texto pra gente por livre e espontânea vontade, se você também quiser compartilhar um desabafo ou conhecimento que seja útil pra mulherada surfista, é só chegar: luiza@langai.com.br

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